"Vive o presente e terás paz." Homenagem a Hirosuke Watanuki
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A 31 de janeiro de 2021, morreu, Hirosuke Watanuki, que, numa longa e profícua existência, de quase um século, 1926-2021, “(…) viveu de uma forma surpreendentemente leve, profunda, consistente, rápida e multidisciplinar”, confirmando antes de tempo, como escreveu, no seu obituário, a professora e arquiteta paisagista, Cristina Castel-Branco, “(…) cinco dos seis paradigmas que Italo Calvino anunciou para o século XXI, antecipando a forma como o iríamos viver: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade, consistência. (…) Na obra de Watanuki transparecem todos estes atributos, menos a visibilidade.” [Diário de Notícias, 7/3/21]
A vida Hirosuke Watanuki foi de facto marcada por uma “consciente” falta de visibilidade. Porque, e ao contrário dos artistas ocidentais, para quem a visibilidade é tudo, no oriente ela é circunstancial, refletindo-se, fundamentalmente, no conceito de pertença.
No ocidente vigora, desde tempos remotos, o primado da existência. Onde a visibilidade para o outro marca as regras da nossa existência, em que vigora o “sistema das artes” – marcado pelos galeristas, críticos, etc. – que dita as regras. Para os ocidentais, que são relativistas, os valores estéticos são meros detalhes circunstanciais; onde o texto é mais importante que contexto. No mundo oriental, movimentos estruturantes para a história da arte, como sejam o abstracionismo ou o surrealismo, são impensáveis, já que estes colocam o foco das suas abordagens estéticas na nossa relação/pertença cósmica, pelo que no oriente, e em particular no Japão, a função artística “ainda” continua a ser “a de imitar a vida”; um paradigma há muito afastado no ocidente, em que é a “vida que imita a arte”!
Se, enquanto artista plástico, comungo desta visão discursiva da arte, não estou naturalmente indiferente ao trabalho do Mestre Watanuki, até porque ao conhecê-lo pessoalmente confiro, a priori, a sua existência, assim como recordo a sua estética que marcou o seu trilhar no mundo das artes, e que teve o seu grande impulso, em 1957, quando, aos 31 anos de idade “atracou” em Portugal e ao invés de perseguir uma carreira diplomática, a que aparentemente “estava destinado”, a abandonou em prol de uma futura atividade plástica, particularmente profícua, evidenciada nos muitos trabalhos que realizou em Portugal durante os 11 anos que viveu entre nós, que abrangem temáticas diversas, todas marcadas pelo seus singular e rigoroso traço, como sejam as perspetivas dos portos de Lisboa e de Leixões, de bairros típicos, de cidades e vilas portuguesas onde viveu ou visitou, - destaco a genial perspetiva da vila da Golegã, que poderão ver no museu Martins Correia - os trabalhos publicitário feitos para TAP, os retratos de rostos e figuras femininas, etc. Um leque de obras, que, em 2017 estiveram patentes, na exposição retrospetiva “Watanuki: Agora mesmo”, realizada na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa, e, no Museu Nacional Machado de Castro, em Coimbra.
Foi a última vez, - e ele tinha consciência disso, que viria ao “seu país irmão”.
Uma amizade pelo nosso país que ele, pouco tempo antes de morrer, e numa conversa à distância, que a técnica atual permite, despediu-se dos seus amigos, Cristina Castel-Branco e Pedro Canavarro, com um sentido obrigado!
Morreria no “ryokan Goshobo”, uma pousada / terma, situada em Arima Onzen, nos arredores de Kobe, onde, numa pedra dos banhos quentes, esculpiu, em bom português, as palavras "amor, saúde, eternidade". E, igualmente, incitou, os donos do hotel, e seus amigos, a usarem como logotipo dessa estância, aquele que foi o seu lema de uma vida quase centenária: "Vive o presente e terás paz."
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Em 1966, regressava ao Japão, tendo desaparecido, como ainda escreveu Cristina Castel-Branco “da memória cultural portuguesa, confirmando-se que não investiu na visibilidade”. Visibilidade que é, ou só. funciona no nosso, supramencionado, sistema de artes, em que a condição de ser supõe o olhar dos outros. No Japão, como os critérios são os de pertença, este não foi um problema para Watanuki, e que, inclusive, numa profunda humildade, afirmava, numa entrevista, em 2016, ser um amador: “sou um amador em tudo o que faço – nunca aprendi o quer que fosse – essa é a minha força”!
Esta sua forma, tão oriental de ser e de estar, num perfeito plasmar da filosofia zen, levou-o a refletir a vida, e a incutir que “vivamos o presente para termos paz”, ou seja, numa atitude filosófica bem diferente dos moldes que a filosofia ocidental, por ser mais interrogativa, se alicerça.
No ocidente, e em particular, desde Sócrates, o nosso fito é existencial e interrogativo, incitando ao autoconhecimento, no oriente, e sob inspiração confucionista, e naturalmente budista, a preocupação é cosmológica, ou seja, preocupando-se com a nossa pertença: “Sê tu mesmo e terás paz”.
É esta ideia de pertença, a par de um acidente geográfico – o Japão-arquipélago sobrepovoado, inóspito – que me impede, assim como à maioria de não japoneses que aí nasceram de, caso o quisermos, optarmos por essa nacionalidade. Sou, somos e seremos sempre gaijin, ou seja, uma "pessoa de fora", um conceito aparentemente rígido e amplo que “tanto se refere à nacionalidade, à raça ou à sua etnia. ” Porém este olhar distante e desconfiante perante o outro, isto é, de não pertença, não é um exclusivo deste país oriental. Porque, como escreveu Alain Finkielkraut, à boleia de Claude Lévi-Strauss, “a humanidade cessa nas fronteiras da tribo, do grupo linguístico, e até às vezes da aldeia: a tal ponto que grande número de populações ditas primitivas se designam a si mesmas pelo nome que significa. (…) o que implica assim que as outras tribos, grupos ou aldeias não participam das virtudes ou até da natureza humanas. (…) É frequente irem ao ponto de privar o estrangeiro deste último grau de realidade fazendo dele um “fantasma” ou uma “aparição”. [in “Humanidade Perdida”, 1997, p.11]
Desde que regressou ao Japão, Watanuki nunca parou de trabalhar, seja através dos seus magníficos desenhos, na manufatura de kimonos ou peças em laca, ele sempre foi ativo.
Watanuki foi o responsável pelo design de caixas de chá ou demais ilustrações para os negócios de seus amigos.
Foi também nesse tempo, que ele, através do nosso embaixador de então, Armando Martins Janeira, conheceu o meu pai, e fez o meu retrato há quase 55 anos e o levou a refletir, dentro os moldes típicos da filosofia oriental, budista e zen, a sua pertença e o seu lugar no cosmos, ou a ser “Muhoan”.
Isto é, um olhar sobre a vida que o livro “Agora Mesmo: Retiro de catavento”, que será lançado na Casa-Museu Passos Canavarro, no próximo dia 6 de setembro, pelas 18 horas, nos ajudará a compreendê-lo e quiçá a nos compreender. Porque, e por mais distantes que as filosofias e os filosofares divirjam, há semelhanças nas dissemelhanças. Caso contrário somos meros automatismos, sem qualquer futuro. E não havendo futuro, não há presente, e não existindo presente não haverá qualquer harmonia possível. Não teremos paz.
Procuremos então viver o presente e termos paz!
Por António Canavarro in Correiodo Ribatejo
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